terça-feira, 29 de novembro de 2011

'és a mulher da minha vida'




'és a mulher da minha vida'
diziam-lhe eles.

primeiro um, depois o outro, e ela crendo que chegava e que sobrava, ser a mulher da vida de outro, a eleita para ser a mais amada, desejada, idolatrada, testemunhando de que forma, primeiro um, depois o outro, lhe acudiam aos caprichos e, com a paciência dos santos, lhe aturavam as manias, desculpando-lhe as ausências, perdoando e relevando a balança que oscilava no seu peito e que ora a fazia querê-los, ora queria abandoná-los, porque não se amava a amá-los.

foram anos neste jogo. aceitou-os, primeiro um, depois o outro, por achar que a primazia era uma benção, acreditando que merecia as atenções que lhe votavam, mesmo que não compreendesse de onde lhes vinha aquela ideia de a amarem quase mais do que a si mesmos, nem a pieguice tonta de lhe dizerem, uma e outra e outra vez, que sem ela a vida não teria a mesma graça.

educada a ouvir histórias de fadas, e a criar, ela própria, os seus enredos maravilha, acreditava que somente um grande amor ia salvá-la das agruras e das ânsias de uma mortal existência. esse grande amor da vida, que via chegar nos filmes montado num cavalo branco, principesco, encantador, o mais perfeito dos seres onde veria, finalmente reflectida, a sua própria perfeição, iria chegar um dia para a tornar, mais uma vez, na mulher da vida dele. e nem sequer a evidência de que a mulher da sua vida tinha de ser ela própria a demoveu de procurar o amor fora.

e foi assim que chegou à sua vida aquele que mais lhe pareceu um princípe, mesmo sem o cavalo branco e o manto da realeza, lá embicou que devia ser aquele, nem ela sabe bem porquê. mas remexia-lhe as entranhas e afogava-a num sufoco que nunca tinha sentido e, sobretudo, teve a decência de não lhe dizer nenhuma vez
és a mulher da minha vida.
talvez por isso, desatou a amá-lo tanto que, de novo, se esqueceu que a mulher da sua vida tinha de ser ela própria e caíu no mesmo logro em que, primeiro um, depois o outro, já tinham caído em tempos e fez dele o homem da vida dela. acudia-lhe aos caprichos e, com a paciência das santas, aturava-lhe as manias, desculpava-lhe as ausências, perdoava e relevava a inconstância no seu peito, mesmo que, secretamente, ansiasse pelo próximo, pois nunca estava contente: desta vez, pela injustiça de não ser a mulher da vida dele, e usando essa desculpa para fugir de vez em quando.

qual não foi, então, o espanto, quando o próximo chegou num dia em que se olhava ao espelho. tão igual a ela própria que quase o mandou embora, afinal não tão perfeito como sempre imaginara, não era homem sequer e muito menos principesco. mas trazia-lhe de dentro aquilo que há anos procurava fora dela e, por isso, não quis crer, já que isso invalidava a história maravilhosa, onde um ele e uma ela se uniam para compor a felicidade, como se de duas metades se tratasse.

e, no entanto, em frente ao espelho, e a haver metade, era uma metade dela e nenhum ele, nem inteiro nem pela metade, para ceder aos seus encantos, nenhum ele para a tratar com primazia, nenhum ele para fazer papel do princípe, nenhuma pieguice tonta, mais ninguém para além dela a pedir-lhe um longo abraço e não foi logo que acedeu estender-lhe os braços. resistiu sempre que pôde e ainda evita esse contacto, quando as histórias são mais fortes que a presença, quando o mito cor-de-rosa é mais forte que o amor. ele + ela = felizes para sempre.

provavelmente, ainda não é a mulher da sua vida e, no entanto, foi o amor que sentiu maior que tudo ao amar outro que fez com que empreendesse o resgate de si mesma. se vai ou não vai ser salva, dependerá do quanto, ao espelho, for acedendo a abraçar-se por inteiro, cada vez com menos medo de afinal não ser perfeita.


Inês de Barros Baptista

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