quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

CARTA AO RESSABIADO


Meats Meier

O ressabiado é o labrego do invejoso. O parolo do ciumento. O azeiteiro dos ambiciosos. O lagareiro dos egoístas. O ressabiado é o invejoso com tuning, o ciumento com faróis xénon azuis, o ambicioso com spoilers e ailerons (ler “eilerons”, por favor) à toda à volta, o egoísta com quatro abufadeiras duplas. O ressabiado é aquele gajo que tem, dentro de si, todo o combustível necessário para chegar longe e fazer algo de profícuo – mas que prefere, por ser azeiteiro e parolo e labrego, beber essa gasolina. E ficar, claro está (porque um azeiteiro bêbedo é, para além de um azeiteiro, um bêbedo), ainda mais azeiteiro e parolo e labrego. Que tristeza.

O sol, quando nasce, é para todos. E as minhas letras também. O ressabiado, porque é, parecendo que não, um ser humano como os outros, também é filho (para além de filho disso que estás a pensar e que acaba em –uta) de Deus. Toma lá então esta, meu chungoso.

É para ti, nobre ressabiado, que escrevo. Sim: para ti. Para ti que perdes tempo (e isto sim é perder tempo: atirar, literalmente, tempo ao lixo) a ter inveja da inútil, da que nada (para além de sebo) produz. Para ti que perdes tempo a querer ficar da altura dos que invejas – mas que usas, para isso, a ordinária táctica de rebaixar os outros (ao invés de preferires, como todos os que não são ressabiados sabem, a bem mais interessante táctica de quereres, tu, em ti, erguer-te). Este texto é para ti, meu grande pequerrucho – que acreditas que ser grande é estar, mesmo que por instantes, à altura dos grandes. Mas não, meu pacóvio: o grande, mesmo que por vezes esteja à tua altura, só o está nos instantes em que, como todas as pessoas, precisa de se dobrar um pouquinho para defecar. É facto: os grandes também cagam como os outros. É uma pena que tenha de ser, porque tu insistes em estar lá, no chão, a rastejar, em cima de ti. Vai-te lavar, ó saloio.

Não tenho de evitar (porque haveria de não o evitar?) dizê-lo com todas as letras: sou invejado. Sou invejado por muitas. E sobretudo por muitos. E isso nada teria de negativo se esses muitos que me invejam fizessem dessa inveja algo de interessante: se esses muitos, roídos de inveja, se roessem todos para fazer melhor do que eu. Para fazerem do que eu faço quase nada face àquilo que eles fazem. Aí sim: estariam a ser verdadeiramente invejosos; aí sim: estariam a sentir a inveja que vale a pena: a inveja saudável. A inveja que faz andar o mundo. Esses invejosos, que passam os dias a pensar como me conseguirão penetrar com toda a potência à traição e pelas costas, seriam invejosos saudáveis se passassem o tempo a quererem que fosse eu a sentir inveja deles. Do que eles são, do que eles fazem. Mas não. Não é isso que eles fazem. Ressabiados.

Lê com atenção, ó ressabiado: estas palavras (irrepreensivelmente escritas - há que dizê-lo para, desde já, começares a ficar ainda mais ressabiado) são feitas à tua medida: para me invejares como deve ser. Para me invejares com motivo, com força, com intensidade. Para me invejares com propriedade. Já que me invejas, e te ressabias com essa inveja, é bom que tenhas matéria-prima a sério. Embrulha lá mais estes argumentos.

Sou um gajo feliz. Faço aquilo que quero fazer, aquilo que sempre quis fazer. E faço-o bem. Faço-o muito bem. Faço-o bem comó catano. Escrevo, ensino a escrever. Vivo, ensino a viver. Rio, ensino a rir. E sorrio e ensino a sorrir, e também canto e danço e peço a alguém que me ensine a cantar e a dançar (mesmo que não cantar nem dançar nada de jeito não me impeça de ser feliz assim: a cantar; todos os dias a dançar e a cantar: todos os dias a dançar-me e a cantar-me). Fiz dos sonhos realidade, das intenções realizações, do que os olhos olharam o que as mãos tocaram. E há mais: amo e sou amado até à pura da demência, amo e sou amado até à mais intensa das intensidades. E tenho uma família linda: de cima a baixo, de dentro a fora: linda. Absolutamente linda. Perfeitamente linda. E depois. E depois há aquilo que, tenho a certeza, te vai deixar ficar no pico do ressabiamento (até já esfrego as mãos só de imaginar a tua carita de fracassado crónico): para além disso tudo, para além de ter cérebro e escrever e ensinar a escrever e ter amor e paixão e tesão e uma família linda de dentro a fora, de cima a baixo, sou um gajo giro. Yep: um gajo atraente. Um gajo bonito. Só mais uma vez para não teres de ser internado por excesso de ressabiamento: um gajo com bom aspecto: um gajo desejável. Eu sei que era desejável não to dizer assim, de forma aberta. Eu sei que não me fica bem dizer isto – mesmo que o sinta. Mas o que fica bem que vá para o baralho. Eu atiro-te com isto, mais uma vez, à cara (a essa cara que, Deus te ajude, nunca recebeu elogios de um espelho): eu sou um gajo que recebe mais mensagens de elogio e de amor e de pulsão e de desejão por dia do que tu, algum dia, receberás na tua vida inteira. É doloroso, não é? Vá, limpa as lágrimas e anda daí para o último parágrafo. Labrego.

Hoje decidi dar-te motivos para seres ressabiado. Hoje decidi dizer-te que tens todos os fundamentos para me invejar. Tenho a vida que provavelmente queres, o talento que não tens (ou tens e preferes gastar a gastar o meu), a respiração tranquila e pacífica que não consegues ter. Tenho a plena convicção de que a minha vida vale a pena. A minha vida. Ele em ela. Ela em eu. Ela sem precisar da tua ou da de outros como tu. E é essa a verdade que tens de encarar (para transformares o ressabiamento em monumento: o teu monumento, saído de ti e não do não-outros): tens de ser pró-tu – e não, aprende lá isto por favor, o anti-outros. Tens de ser a favor de ti. Sem pensar em matar os outros para te fazeres viver. Sem precisares de apertar o pescoço dos outros para tirares o teu pescoço do cepo. Tens de ser invejoso, sim; tens de ser ciumento, sim; tens de ser ambicioso, sim; tens de ser egoísta, sim. Tens de ser essa merda toda que só é negativa se tudo isso se transformar em não fazer – ao invés de se transformar em só fazer. A inveja e o ciúme e a ambição e o egoísmo só são maus quando se lida mal com eles – quando são transformados, todos eles, em reles ressabiamento. Eu quero, e gosto, que tenhas inveja de mim. Dei-te motivos para isso – muitos e variados. Eu próprio, se estivesse no teu lugar, tinha inveja de mim. Chamava-me cabrão, dizia que eu era uma bosta e que nada tenho de especial. Mas eu, se estivesse no teu lugar, só perdia uns segundos a pensar e a dizer isso. Depois, logo a seguir a esses segundos, deixaria de dizer e pensar isso e passaria a tentar ficar eu do lado de cá: do lado que se é motivo de inveja e não invejoso. Do lado que é água que cai na fonte e não a fonte onde cai a água. Eu, se fosse invejoso, já não estava a ler este texto e a sentir-me ressabiado por não ter sido eu a escrevê-lo e a senti-lo. Eu, se fosse invejoso, já não estava ressabiado. Mas eu, se fosse tu, já não tinha motivos, sequer, para estar ressabiado. Porque eu, bem vistas as coisas, vou ser sempre eu: o cabrão que tem todos os motivos, e acabou de to esfregar na cara, para fazer da vida uma festa. Uma festa de sentidos: uma festa com todo o sentido. E tu: vais fazer fazer algo de útil com isso que sentes – ou vais preferir despejar a bílis a falar mal de mim? Pois. Temos pena. 

in "EU SOU DEUS"
Pedro Chagas Freitas

Sem comentários:

Enviar um comentário