terça-feira, 4 de junho de 2013

Poeta...ou...Carroceiro?


"Enredado caso, hem, meu amigo? Ah! muito filosofei sobre ele, por dever de filósofo! E conclui que o Matias era um doente, atacado de hiperespiritualismo, de uma inflamação violenta e pútrida do espiritualismo, que receara apavoradamente as materialidades do casamento, as chinelas, a pele pouco fresca ao acordar, um ventre enorme durante seis meses, os meninos berrando no berço molhado... E agora rugia de furor e tormento, porque certo materialão, ao lado, se prontificara a aceitar Elisa em camisola de lã. Um imbecil?... Não, meu amigo! Um ultra -romântico, loucamente alheio às realidades fortes da vida, que nunca suspeitou que chinelas e cueiros sujos de meninos são coisas de superior beleza em casa em que entre o sol e haja amor.

E sabe o meu amigo o que exacerbou, mais furiosamente, este tormento? É que a pobre Elisa mostrava por ele o antigo amor! Que lhe parece? Infernal, hem?... Pelo menos, se não sentia o antigo amor intacto na sua essência, forte como outrora e único, conservava pelo pobre Matias uma irresistível curiosidade e repetia os gestos desse amor... Talvez fosse apenas a fatalidade dos jardins vizinhos! Não sei. Mas logo desde Setembro, quando o Torres Nogueira partiu para as suas vinhas de Carcavelos, a assistir à vindima, ela recomeçou, da borda do terraço, por sobre as rosas e as dálias abertas, aquela doce remessa de doces olhares com que durante dez anos extasiara o coração do José Matias.

Não creio que se escrevessem por cima do muro do jardim, como sob o regime paternal do Matos Miranda... O novo senhor, o homem robusto da bigodeira negra, impunha à divina Elisa, mesmo de longe, de entre as vinhas de Carcavelos, retraimento e prudência. E acalmada por aquele marido, moço e forte, menos sentiria agora a necessidade de algum encontro discreto na sombra tépida da noite, mesmo quando a sua elegância moral e o rígido idealismo do José Matias consentissem em aproveitar uma escada contra o muro... De resto, Elisa. era fundamentalmente honesta; e conservava o respeito sagrado do seu corpo, por o sentir tão belo e cuidadosamente feito por Deus — mais do que da sua alma. E quem sabe?... Talvez a adorável mulher pertencesse à bela raça daquela marquesa italiana, a marquesa Júlia de Malfieri, que conservava dois amorosos ao seu doce serviço, um poeta para as delicadezas românticas e um carroceiro para as necessidades grosseiras.

Enfim, meu amigo, não psicologuemos mais sobre esta viva, atrás do morto que morreu por ela! O facto foi que Elisa e o seu amigo insensivelmente recaíram na velha união ideal, através dos jardins em flor. E em Outubro, como o Torres Nogueira continuava a vindimar em Carcavelos, o José Matias, para contemplar o terraço da Parreira, já abria de novo as vidraças, larga e extaticamente!"

in, "José Matias"
Eça de Queiróz


No meu caso, prefiro um dois em um...um POETA CARROCEIRO
Bicho em extinção, bem sei... ;)


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