sexta-feira, 25 de abril de 2014

Chega-se a um momento na vida


Chega-se a um momento na vida (e por coincidência a um momento do mundo que seja por linguagem o nosso) em que o poeta se interroga antes de escrever: porquê, e para quê, e para quem?
De nós mesmos falar não é possível: seria necessário que houvesse humano respeito, delicadeza humana, e não este descaso de assassinos que se pisam sem desculpas.
Falar do que vai por este beco do universo onde as comadres se acotovelam para levantar a saia no escuro dos portais?
Seria preciso que a tristeza e a amargura e a visão do abismo fossem partilhadas mais a fundo que a retórica de serem tão infelizes no conforto do piolhoso que vê mais dois piolhos na cabeça do outro.
Pensar em melhores mundos?
Haverá, mas não aqui.
Aqui é o fim da festa, o fechar das luzes do último dia da Exposição dos Centenários, o arriar das bandeiras, o apodrecer dos barcos pela praia.
Aqui só há lugar para metáforas, óbvios símbolos, jogos de prendas poéticas, para a droga de um sexo reduzido a palavras.
Cantem a beleza que se esvai, da juventude que se perde, dos prados e das árvores, com doce melancolia.
O leitor tremula, sente-se irmão, enfia sorrateiramente a mão no bolso das calças, apalpa-se e fecha os olhos, que está salva a pátria.



Jorge de Sena





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