quinta-feira, 1 de maio de 2014

........sempre gostei de ser amado, e nunca de amar


"Não encontro dificuldade em definir-me: sou um temperamento feminino com uma inteligência masculina.
A minha sensibilidade e os movimentos que dela procedem, e é nisso que consistem o temperamento e a sua expressão, são de mulher.
As minhas faculdades de relação — a inteligência, e a vontade, que é a inteligência do impulso — são de homem.
Quanto à sensibilidade, quando digo que sempre gostei de ser amado, e nunca de amar, tenho dito tudo. Magoava-me sempre o ser obrigado, por um dever de vulgar reciprocidade — uma lealdade do espírito — a corresponder.
Agradava-me a passividade.
De actividade, só me aprazia o bastante para estimular, para não deixar esquecer-me, a actividade em amar daquele que me amava.
Reconheço sem ilusão a natureza do fenómeno.
É uma inversão sexual fruste.
Pára no espírito.
Sempre, porém, nos momentos de meditação sobre mim, me inquietou, não tive nunca a certeza, nem a tenho ainda, de que essa disposição do temperamento não pudesse um dia descer-me ao corpo.
Não digo que praticasse então a sexualidade correspondente a esse impulso; mas bastava o desejo para me humilhar.
Somos vários desta espécie, pela história abaixo — pela história artística sobretudo. Shakespeare e Rousseau são dos exemplos, ou exemplares, mais ilustres.
o meu receio da descida ao corpo dessa inversão do espírito — radica-mo a contemplação de como nesses dois desceu—completamente no primeiro, e em pederastia; incertamente no segundo, num vago masoquismo."

Fernando Pessoa

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