quinta-feira, 23 de outubro de 2014

....................viver o hoje



"Nunca a vida foi tão actual como hoje: por um triz é o futuro.
Tempo para mim significa a desagregação da matéria.
O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um verme dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda a sua polpa.
O tempo não existe.
O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si não existe.
Ou existe imutável e nele nos transladamos.
O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta.
Então — para que eu não seja engolida pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa — eu cultivo um certo tédio.
Degusto assim cada detestável minuto.
E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie.
Quero viver muitos minutos num só minuto.
Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a ideia de imobilidade eterna. Na eternidade não existe o tempo.
Noite e dia são contrários porque são o tempo e o tempo não se divide.
De agora em diante o tempo vai ser sempre actual.
Hoje é hoje.
Espanto-me ao mesmo tempo desconfiada por tanto me ser dado.
E amanhã eu vou ter de novo um hoje.
Há algo de dor e pungência em viver o hoje.
O paroxismo da mais fina e extrema nota de violino insistente.
Mas há o hábito e o hábito anestesia."


Clarice Lispector 
in 'Um Sopro de Vida' 

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