segunda-feira, 27 de abril de 2015

Espécie de Amor



Estava a ler a autobiografia de um romancista, 'Os factos', de Philip Roth.
Mas estava a sentir-me um bocado maçada.
Em boa hora comprei os dois livros novos de Pedro Paixão.
"O Céu na Boca" e "Espécie de Amor" 
Os livros dele são irregulares, de qualidade um bocado aleatória.
Não gosto dos primeiros mas, os últimos cativam-me.
Gosto dele, talvez porque gosto de gente com pancada.

Comecei pelo 'Espécie de Amor' em que fala da sua desmedida amizade com Miguel Esteves Cardoso. E estou presa. Muito bem escrito, muito interessante, como se fosse uma história muito íntima mas que sabemos ser verdadeira. Uma amizade que esmagava Pedro Paixão.

Conheceram-se contra vontade através de uma amiga. MEC já era uma figura pública e Pedro não estava interessado em se relacionar com esse tipo de pessoas. Dizia que eram uma fonte de mal-entendidos. “Por outro lado, o Miguel estava apaixonado por aquela rapariga e eu era uma distracção”, explica. A verdade é que mal foram apresentados passaram a noite a falar da lógica de Kurt Gödel e do filósofo Ludwig Wittgenstein. Nem perderam tempo com assuntos triviais. Aliás, desprezavam as coisas normais da vida. “Éramos novos, rebeldes, anarquistas, apaixonados, tínhamos um mundo para conquistar.”
Ficavam acordados até altas horas a falar sobre os autores Samuel Beckett, James Joyce e Ezra Pound. 

Daí até partilharem casa, a mesma onde Pedro Paixão viveu até há poucos anos, não passou muito tempo. Durante um período que ninguém consegue precisar, não se largaram. As únicas coisas que lhes interessavam eram os livros, as ideias, os autores e a beleza das raparigas. Cada um ia tendo namoradas, mas por decoro e respeito à beleza que reconheciam no género feminino, não se falava sobre conquistas amorosas, só sobre o amor em abstracto.

Foi uma história de amor. Há muitas histórias de amor sem apelo sexual. Não sei falar por ele, mas para mim, nessa altura, não existia mais ninguém senão ele. Foi uma forma de paixão, de obsessão, era a única pessoa que me interessava ouvir”, reconhece. De tal maneira que, no Natal, ansiava pelo momento em que se libertava da consoada em casa dos pais para se juntar a Miguel, que ficava sozinho a comer leitão da Bairrada. “Na minha família ninguém falava de Joyce: o meu pai era agrónomo, a minha mãe só gostava de Sartre e a minha irmã contava aventuras sobre o príncipe com quem queria casar. Eu não tinha assunto”, diz.

Mas o amigo parecia-lhe ainda mais brilhante quando falava. A admiração era tão grande que o inibia de escrever os seus próprios romances. Só o fez em 1992, depois de os dois se afastarem.
Não houve uma discussão, nem uma zanga definitiva, mas a amizade desvaneceu-se.
Passaram a falar cada vez menos e pouco se encontravam.
Pedro garante que não ficou mágoa nem nada por dizer.

Além disso, Miguel Esteves Cardoso casou com a ex-mulher de Pedro Paixão e isso custou-lhe muito, não por ciúmes mas por medo da má influência sobre o filho e, por isso, recusou ser padrinho de casamento deles, tendo-lhe, então, o Miguel dito que nunca mais se falariam, conta Pedro. 

Mas o livro é mais do que o que ele conta, mais do que os episódios pitorescos.
O livro vale apenas pela escrita, é uma sucessão de frases incríveis. 
Um livro muito bom.

Volta e meia os livros dele são repetitivos, muito intimistas e a tender para o pinga-amor.

Mas este, sendo talvez também isso, é diferente.
Volta e meia até me faz lembrar a Clarice Lispector. 
Aquela escrita que sai ao correr da pena, uma torrente. Mas inteligente, bem escrito.

O Pedro foi um best-seller nos anos 90, e as editoras fizeram bom dinheiro com ele.
O Paixão era aquilo a que um Chagas Freitas aspira ser por estes dias.
Um excitador de alcovas para mulheres (e homens) sensíveis à palavra deleitosa.
 Era, no seu apogeu, muito mais eficaz do que Shakespeare ou Petrarca na hora de lançar a rede ou a escada, conforme a conquista fosse carne ou peixe.

Este Pedro de agora, a ver por este "Espécie de Amor", onde revista as coisas do amor e da amizade, como a do velho amigo MEC, é um artista no pleno domínio do seu instrumento. 
Envelheceu bem, e a andropausa literária só lhe refinou o gosto, a classe, o manuseio da frase arrancada de onde mais convém a quem procura num livro a faísca.
As vendas encolheram, o clube de fãs mirrou, o eco do sedutor perdeu-se entre novas vozes mais acaloradas, mas a arte de escrever sobre o amor maduro nunca esteve tão apurada.

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