sexta-feira, 29 de maio de 2015

O Ursinho Polar



Era uma vez um ursinho polar.

Um dia o ursinho foi ter com a mãe e perguntou-lhe a tremer:

- Oh Mãe!, tens mesmo a certeza que eu sou um ursinho polar, mesmo purinho purinho??

E a mãe respondeu-lhe:

- Claro que és um ursinho polar. Eu sou uma ursa polar pura, o teu pai é um urso polar puro. Concerteza que és um urso polar! Qual é a dúvida?! Agora duvidas da tua família? Depois de tudo o que fiz por ti, ainda vens duvidar que és o mais especial dos ursinhos polares e que dei tudo para fazer de ti o urso que és hoje. Seu ingrato… depois de tudo o que fiz por ti… desde que nasceste nunca mais voltei a ursar como ursava antes.

E a mãe ficou a lamentar-se da sua triste sina e da ingratidão do ursinho.

O ursinho suspirou, cabisbaixo, e sobrecarregado com o peso da culpa foi ter com o avô e perguntou-lhe:

- Oh Avô!, tens mesmo a certeza que eu sou um ursinho polar, mesmo purinho purinho?

Ao que o avô respondeu numa voz rouca e calorosa, enrolando os bigodes com a pata direita e o focinho impondo-se orgulhosamente no ar:

- Oh meu neto! És um ursinho dos mais puros, um ursinho puríssimo! Todas as gerações antes de nós eram ursos polares da raça mais pura da espécie mais pura, os pioneiros do glaciar. Tu descendes da mais pura raça de ursos polares de que há memória. Sabes, quando eu era um ursinho da tua idade,…

E enquanto o avô enrolava os bigodes e relembrava o passado o ursinho correu para o pai:

- Oh Pai, eu sou mesmo um ursinho polar, mesmo purinho purinho?

- Claro que és!

Mas pressentindo que não era bem isso que o ursinho procurava, o pai abraçou-o e perguntou-lhe:

- Por quê, meu filho, por que perguntas se és mesmo um ursinho polar, meu querido filho?

E responde o ursinho a tremer, quase a chorar e abraçando-se a si próprio: “tenho frio!...”




Esta história, que é o pretexto para vos contar uma outra história dentro da história, pode ser lida como uma anedota, uma estória inconsequente que nos faz sorrir ou embevecer ao imaginar o ursinho cheio de frio na sua pele.

Mas esta mesma história também pode ser lida metaforicamente, se lhe impusermos uma certa grelha de leitura; a grelha de leitura de quem pensa o mundo em termos de arquétipos, de grandes princípios universais que se repetem milhões de vezes, em miríades de formas diferentes, mas que nos ensinam sobre os temas fundamentais e eternos da natureza humana através, e apesar, das suas múltiplas experiências humanas no mundo.

A grelha de leitura de quem vê a vida como a manifestação de processos dinâmicos e energéticos regidos por leis rigorosas e que têm como fundamento, e como destino mais glorioso, a produção de consciência.

Era uma vez um ursinho polar.

Todas as histórias começam com “era uma vez…”. Naquele tempo, in illo tempore, num tempo remoto, sem data nem início, não num momento determinado do passado, porque de repente já havia - já tinha começado… sem começar. Os tempos assim, sem tempo, criam um rompimento no fundo da memória, e assim nos podemos abrir a uma história eterna, que sempre existiu e sempre existirá, e ela assim pode fluir através de nós, sem estranheza e sem necessidade de reconhecimento, e a história circular pode manifestar-se num ponto do tempo, o do momento em que ouvimos a história pela primeira vez, de cada vez. O ponto no círculo do eterno que é o eterno aqui e agora.

Era uma vez é a ligação do aqui e agora com outro aqui e agora que tanto existe no passado como existirá no mesmo sítio no futuro, sempre no mesmo sítio e em todos os tempos possíveis, ao mesmo tempo. Ou em sítio nenhum, em tempo nenhum. Simplesmente uma vez.

Era uma vez… um ursinho polar.

Um ursinho polar é uma personagem com quem é fácil identificarmo-nos.

Provavelmente dócil, fofinho, peludo, inofensivo – e branco. Uma personagem do imaginário infantil, com reminiscências de peluche e a pureza da branca de neve. O arquétipo perfeito da parte mais inocente, principiante, inofensiva e desprotegida de nós.

Um dia o ursinho polar foi ter com a mãe e perguntou-lhe a tremer: - tens mesmo a certeza que eu sou um ursinho polar, mesmo purinho, purinho?


Não é difícil assumir, ou imaginar, que o ursinho tremia por estar inseguro, ou com medo no momento de fazer a pergunta, porque temos a tendência profundamente humana de projectar a nossa própria subjectividade sobre o exterior e sobre os outros, interpretando – e reduzindo – tudo à nossa própria escala.

Assim como ao deprimido tudo parece triste e sem graça e ao agressivo tudo é sinal de ameaça hostil, à pessoa que não confia no seu próprio valor qualquer comentário dos outros soa a julgamento depreciativo e criticismo e ao sexualmente reprimido tudo parece imoral, sujo e mau – assim estamos todos condenados a fazer julgamentos que nascem das nossas interpretações subjectivas, assumindo que é a verdade a nossa própria produção subjectiva de significados.

Como diz o outro, a um homem com um martelo tudo lhe parece um prego. Mas este não era um homem com um martelo, era um ursinho polar a tremer.

E quando treme o ursinho polar ao dirigir-se à mãe, é fácil assumir que é por desconforto emocional, insegurança ou por estar amedrontado quando lhe pergunta sobre a sua verdadeira origem: tens mesmo a certeza que eu sou um ursinho polar, mesmo purinho, purinho?

A primeira pessoa para quem nos viramos em busca de conforto e segurança, perante as inquietações da existência ou simplesmente para encontrar colo, calor e comida, é a nossa mãe.

Desde o nascimento estamos instintivamente programados para buscar um seio e nesse seio refúgio, espelho da nossa identidade, confirmação da nossa existência, protecção, sobrevivência.

Todos nascemos com a expectativa arquetípica de que um mamífero mais forte, mais seguro, mais auto-suficiente nos proteja e cuide até sermos capazes de o fazer por nós próprios.

E sabemos que é da qualidade dessa primeira interacção que depende a futura capacidade de nos tranquilizarmos a nós próprios e de cuidarmos dos outros, de nos sentirmos merecedores de colo e carinho, de confiar que a vida é boa e sempre satisfará as nossas necessidades de afecto, segurança, protecção e nutrimento, venha ele sob a forma de amor, dinheiro, alimento ou gratificação e bem-estar emocional. E de podermos dar aos outros o que nós próprios recebemos, porque é difícil poder dar o que se não recebeu.

E sabemos, por isso, que a capacidade instintiva da mãe empatizar com o filho, reflectir os seus sentimentos e saber acolhê-los, de sintonizar o seu ritmo emocional com o ritmo da sua criança, saber espontanea e imediatamente como responder a esses estímulos emocionais – essa capacidade não nasce da reflexão, da análise, de ponderação das várias possibilidades, da lógica e do questionamento, de ler livros ou assistir a cursos sobre como cuidar do bebé.

Nasce, sim, de um instinto inato que eclode nas próprias entranhas, do à-vontade com os próprios sentimentos, com a qualidade da sua própria experiência emocional, da qualidade da sua relação com a sua própria mãe e com a capacidade daquela lhe ter espelhado de forma pura os próprios sentimentos – e da capacidade de receber, simplesmente, o que o filho lhe traz a cada novo momento, aceitando e validando os estímulos e reacções emocionais pelo que são – sentimentos que, pela sua própria natureza, não obedecem a regras da lógica, não precisam de justificação, e não têm nada que ver com o próprio desempenho como mãe.

Mas para isto, é preciso que a mãe não interprete pessoal e subjectivamente as reacções emocionais do próprio filho – isto é, que saiba aceitar a dinâmica própria dos sentimentos do outro sem que tudo tenha necessariamente que ver consigo, com o seu valor como mãe, com o seu desempenho materno. Em suma, sem que a insegurança do filho active a sua própria insegurança interna. Se não, a insegurança ou instabilidade no filho vão fazer emergir a dolorosa insegurança e instabilidade na própria mãe, que não vai poder acolher, aceitar e validar os sentimentos do outro sem julgar ou julgar-se, sem questionar ou questionar-se, sem duvidar de si própria, sem cair na facilidade da auto-justificação, na culpabilização ou no lamento.

Mas esta ursa não tinha espaço para acolher os sentimentos do filho, porque perante a inquietação o que respondeu foi: “claro que és um ursinho polar. Eu sou uma ursa polar pura, o teu pai é um urso polar puro. Concerteza que és um urso polar! Qual é a tua dúvida?! Ai agora duvidas da tua família? Depois de tudo o que fiz por ti, ainda vens duvidar que és o mais especial dos ursinhos polares e que dei tudo para fazer de ti o urso polar que és hoje. Seu ingrato… depois de tudo o que fiz por ti… desde que nasceste nunca mais voltei a ursar como ursava antes”.

A resposta instintiva desta mãe não foi a de aceitar e validar o que o ursinho lhe trazia. De ficar com a pergunta e abrir-se ao que ela traria por detrás. De fazer mais perguntas para se certificar da verdadeira pergunta do filho.

Esta ursa não sabia que por detrás do discurso manifesto existe sempre um discurso latente, isto é, que uma coisa é o que se diz e outra é o que realmente se quer dizer.

A resposta instintiva desta mãe foi a de invalidar a pergunta do filho sem sequer perceber qual era a pergunta. Esta mãe não tinha espaço. Escondeu-se por detrás da lógica, e da genética (“Eu sou uma ursa polar pura, o teu pai é um urso polar puro”) para demonstrar que a pergunta do filho estava errada e não tinha razão de ser.

Depois, sentindo-se acusada, defendeu-se acusando: “ai, agora duvidas da tua família?” E, à boa maneira de quem não sabe lidar com o mal-estar do outro sem se sentir por ele posto em questão, fez o filho sentir-se mal por sentir como ela própria assumira que ele sentia.

“Controla a culpa e controlas o filho”, lê-se na cartilha maternal de algumas mães, e esta fazia parte desse bando. Depois de tudo o que fiz por ti, lamentava a ursa, ainda tens a coragem de pôr em questão a tua mãe, as tuas origens, a tua educação. Como se fosse dela que se tratava, e não do filho. Como se fosse a sua dádiva, o seu empenho, a sua entrega, o seu altruísmo, a sua generosidade, a sua capacidade maternal, a sua imagem, o seu valor, que estivessem em jogo; e não, simplesmente, os sentimentos do filho – dos quais ela nem realmente se apercebeu, de tão auto-envolvida que estava com o seu próprio drama emocional.

O ursinho suspirou, cabisbaixo, e sobrecarregado com o peso da culpa foi ter com o avô e perguntou-lhe: - Oh Avô!, tens mesmo a certeza que eu sou um ursinho polar, mesmo purinho purinho?

Na ausência de eco, e de resposta, por parte daqueles de quem mais imediatamente esperamos apoio, entendimento, compreensão e afecto, viramo-nos para outras figuras significativas na nossa vida afectiva.

E foi o que fez o ursinho, quando foi ter com o avô para lhe levar a questão que o atormentava desde o início da história: serei mesmo um ursinho polar? Ao que o avô respondeu numa voz rouca e calorosa, enrolando os bigodes com a pata direita e o focinho impondo-se orgulhosamente no ar - Oh meu neto! És um ursinho dos mais puros, um ursinho puríssimo! Todas as gerações antes de nós eram ursos polares da raça mais pura da espécie mais pura, os pioneiros do glaciar. Tu descendes da mais pura raça de ursos polares de que há memória. Sabes, quando eu era um ursinho da tua idade,…

O avô ficou contente pela oportunidade de dissertar sobre a pureza da raça e a graça da sua genealogia. Possivelmente pouco habituado a ter platéia para as suas divagações, recordações e memórias, aproveitou a pergunta do ursinho para rebuscar no baú das memórias – afinal, era um avô - todos os galões que confirmassem o valor dos antepassados fundadores e assim mesmo dos descendentes actuais, e na sua voz rouca quase adivinhamos o orgulho de pertencer a tal linhagem, a força da tradição, o poder quase sagrado dos mitos fundadores.

E o ursinho talvez tivesse ficado a ouvir e aprender, imaginamos, se não estivesse tão angustiado com a questão original que o levara de parente em parente em busca de uma resposta. Às vezes, o passado não tem como responder ao presente, embora o tenha fundado.

Cada novo momento de vida emerge e ultrapassa o momento imediatamente anterior que lhe deu origem, o que quer dizer que o futuro é sempre mais rico do que o presente.

Se assim não fosse, e se o passado fosse o limite do presente, o presente limitar-se-ia a repetir o passado e o futuro, o presente e o passado seriam todos a mesma coisa.

E porque nesta situação não era o passado que servia à questão do ursinho, o ursinho seguiu adiante.





E enquanto o avô enrolava os bigodes e relembrava o passado o ursinho correu para o pai:

- Oh Pai, eu sou mesmo um ursinho polar, mesmo purinho purinho?

- Claro que és! Mas pressentindo que não era bem isso que o ursinho procurava, o pai abraçou-o e perguntou-lhe: - Por quê, meu filho, por que perguntas se és mesmo um ursinho polar, meu querido filho?


E no pai o ursinho encontrou finalmente a resposta que procurava. Não tanto a confirmação de que era mesmo um urso polar, porque essa já a mãe e o avô lha haviam dado e o mal-estar ainda assim subsistira; o que o ursinho encontrou foi um espaço de receptividade: um abraço e a vontade de o compreenderem, de o escutarem, de o receberem na sua dúvida, no seu questionamento, na sua incerteza, na sua necessidade de confirmação.

Por que perguntas, que é como quem diz, o que é que se esconde por detrás da tua pergunta? O que é que queres perguntar, perguntando o que estás a perguntar? O que há, que te leva a colocar essa questão? Qual é o mal-estar que posso tentar mitigar?

E quando o ursinho responde, a tremer, quase a chorar e abraçando-se a si próprio: “tenho frio!...”,  tudo se desvela, tudo se desvenda, tudo se resolve.

O ursinho tremia era por causa do frio, e não por qualquer outra razão que qualquer um de nós, ou dos seus familiares, pudesse ter imaginado. Mas o frio, aqui, ao invés de encerrar a história e dá-la por terminada, abre caminho a uma nova história, a outra história, à “verdadeira” história.

O ursinho sentia-se inadequado; sentia-se profundamente desconfortável por estar aquém do que seria de esperar de um urso polar, em falta para com aquilo que define um habitante do Ártico. O ursinho sentia-se corroído, imaginamos – isto somos nós a projectar; but then again, que podemos nós fazer, quando afirmamos seja o que for, a não ser apropriarmo-nos da nossa própria subjectividade? - pelo sentimento de inadequação por não estar à altura das expectativas, das funções, do papel de um urso polar. Adivinhamos-lhe a vergonha, o desconforto na própria pele, o medo de não ser suficientemente bom, a ambivalência de saber intelectualmente, por um lado, que um urso polar não tem frio e a honestidade em admitir, por outro lado, o que verdadeiramente sentia – o frio – e a dissonância por se saber um urso polar.

E aqui encontramos mais um tema arquetípico da nossa existência: para cada papel que desempenhamos existe um conjunto de atribuições, expectativas, funções e capacidades intimamente a ele associadas.

Espera-se de um urso polar que coma peixe, que esteja coberto de pelo e largas camadas de gordura, que viva confortável no seu habitat glaciar. Não se espera que tenha frio, assim como não se espera que suba às árvores, que rache cocos com os dentes ou que acasale com morsas.

A existência de papéis confere uma identidade social a cada um dos elementos de um grupo, atribui-lhes funções e comportamentos relativamente previsíveis, gostos, preferências, rotinas e padrões. Os papéis contribuem para a estabilidade e para a coesão social, de modo a que cada um sabe o que deve fazer e o que esperar de cada um dos outros.

A aprovação dos outros, o sentimento de integração no grupo, o sentimento de adequação e normalidade vêm com a capacidade de desempenhar adequadamente esses papéis.

O caos social e a alienação individual nascem quando os indivíduos se recusam, se sentem incapazes ou indisponíveis para desempenhar adequadamente os seus papéis – como o ursinho que tinha frio.

E se grande parte do nosso sentimento de valor nos é devolvido pela aprovação dos outros, pelo sentimento de encaixar adequadamente no nicho que nos é atribuído pelos nossos papéis e pela nossa desenvoltura em assumi-los, compreendemos o quão inadequado, inferiorizado e inseguro se sentiria o ursinho polar que tinha frio.


Era um ursinho deslocado, condenado à marginalização ou à auto-exclusão, à revolta e à alienação – ou um ursinho condenado a lidar sozinho e secretamente com a sua própria falha apercebida, processo tão mais angustiante quanto mais o ursinho se obrigasse, a prazo, a ocultar de si próprio e dos outros a verdade do seu interior, a verdade da sua hipotermia.

E a prazo, à medida que mais e mais energia fosse mobilizada para defender o corpo do frio, ou para viver à altura de um papel para o qual não tinha capacidade, o ursinho deprimiria e sucumbiria, finalmente, ou ao frio ou à evidência da necessidade de se agasalhar – defraudando assim tudo quanto seria esperar de um ursinho polar mesmo purinho, purinho.

E quem sabe, o mais brilhante dos psicoterapeutas de ursos viesse a perguntar-lhe um dia directamente, olhos nos olhos e focinho no focinho, a mais valiosa das perguntas que se pode fazer a um urso que deprimiu, isto é, que esgotou toda a sua energia vital a tentar defender-se da espontaneidade e da verdade dos seus próprios impulsos mais autênticos, provavelmente por se sentir manietado pelas regras, expectativas, ou ameaça de retaliação por parte dos outros: - então e, diga-me lá, seu ursinho, contra quem é que está deprimido?

E se fosse um psicoterapeuta comediante, com uma sensibilidade especial para a semântica e para as ironias da existência que se podem evidenciar quando se fazem malabarismos com as ideias e as palavras, como se as palavras fossem coisas, e não faz falta atirar o livro do Foucault ao ar para fazer malabarismos com as palavras e as coisas, talvez o psicoterapeuta de ursos lhe perguntasse até contra quem é que o ursinho polar estava... polarizado.

Mas não; não foi preciso chegar a tanto.

Porque este ursinho foi capaz de procurar ajuda para lidar com o seu próprio senso de inadequação, e porque encontrou no pai a receptividade à sua angústia, e pôde desabafar e admitir perante o outro o terrível segredo que o consumia.

E em vez de continuar a ocultar dos outros a verdade de quem era, e a sofrer secretamente a grande dor aparentemente e à partida inconfessável que sentia, o ursinho procurou – e encontrou – o meio e o contentor com quem partilhar a verdade de quem era; apesar de ter consciência do que deveria sentir (ou, neste caso, não sentir) e de antecipar, eventualmente, as possíveis consequências de não estar à altura do seu papel, das expectativas dos seus parentes, da sua raça, da sua sociedade e da memória de dezenas de gerações antes dele, que habitam ainda gravadas em cada um dos seus genes.

E o ursinho encontrou no pai um confidente, e no confidente, confiança.

Astrologicamente, falaríamos dos arquétipos do Sol e de Saturno, e da necessidade de os integrar, assim: o Sol refere-se à capacidade de se assumir na integridade de quem se é e na necessidade de ser reconhecido, aceite e encontrar aprovação para nossa identidade, e Saturno simboliza a capacidade de estar à altura dos papéis sociais que assumimos.

Por isso se fala em Saturno como “respons-abilidade”, ou seja, a capacidade (habilidade) de dar responsa, isto é, resposta; e qualquer interacção entre Sol e Saturno simboliza, assim, a necessidade de assumirmos responsavelmente (Saturno) quem somos (Sol).

Por isso, também, qualquer interacção entre Sol e Saturno num tema astrológico fala da necessidade de encontrar aprovação social, isto é, exterior, para quem somos.

E por isso, ainda, as interacções entre o Sol e Saturno falam da necessidade de iluminar (Sol) os nossos medos e sentimentos de inadequação (Saturno), de não estarmos à altura, de não sermos suficientemente bons.

E por isso falam também da capacidade de nos aceitarmos na nossa imperfeição e na capacidade de admitirmos que somos quem, e como, somos a cada momento de vida.

Por isso falam também da capacidade de nos aprovarmos (Saturno) a nós mesmos (Sol), e de trazer à luz do dia (Sol) o hiato entre quem somos (Sol) e o que acreditamos que deveríamos ser (Saturno), o que a nossa sociedade espera de nós (Saturno), o que as figuras de autoridade esperam de nós (Saturno), o que os nossos papéis sociais (Saturno) implicam, o que precisamos de ser (Sol) para termos aprovação, aceitação e estatuto (Saturno).

Por isso falam também na limitação (Saturno) dos níveis de calor (Sol) do organismo, manifestando-se como o frio crónico de que sofria o ursinho. E até pode ser, que no dia como aquele, o Sol e o Saturno do ursinho estivessem numa de trígono: ou não tivesse ele encontrado, no pai, uma figura de autoridade (Saturno) que o validou e amou no que ele estava a ser (Sol) naquele momento.

Quem sabe o ursinho tivesse nascido sob uma destas quadraturas, Sol-Saturno, e com uma Lua (a mãe) difícil, que não o soube conter.

Talvez o ursinho tivesse nascido com um Urano (o planeta da diferença, da originalidade singular, do inesperado e de tudo o que vai “contra” o que é normal, aceitável, aprovado ou esperado pelos outros) muito forte.

E talvez este Urano estivesse na Casa IV do seu tema astrológico, que é a Casa do “lar” em que se nasceu, sugerindo que o ursinho tivesse nascido a sentir-se alienado daquele meio, como se ali não pertencesse e não pudesse cumprir-se, ou ser feliz, no seu local de origem.

Talvez o tema astrológico do ursinho sugerisse a dificuldade em aceitar a encarnação como urso, pelo menos naquele glaciar e naquele tempo histórico, com o conjunto de papéis atribuídos aos ursos polares pela sociedade de ursos em que nasceu.

Talvez estivesse aí simbolizado um “karma” de não ser feliz enquanto não tivesse a audácia e a coragem de romper com os estereótipos sociais associados a ser urso.

Talvez o ursinho, mercê do Urano, estivesse condenado a tornar-se um ursano.

Talvez este ursinho estivesse condenado a sentir-se para sempre miserável, infeliz e inadequado na sua roupagem de urso polar, mobilizando todas as suas energias, que seriam cada vez menos, para estar à altura do que se espera de um urso.

Talvez aguardando a situação-limite do esgotamento ou de uma fuga desesperada e despreparada para outras paragens, quando fosse por demais insuportável viver à altura do que não se é.

Talvez ansiando secretamente encontrar um dia outro urso que fosse como ele, mas um que fosse suficientemente corajoso para lhe contar que também vivia com frio para que ele próprio não precisasse de o fazer – e ter ainda assim, e por causa disso, com quem se identificar clandestinamente e à margem das expectativas, para aliviar o peso da solidão e da alienação: outro alien como ele.

Quem sabe a que estaria o ursinho condenado? Felizmente não foi urso ao ponto de consultar um astrólogo ainda mais urso, daqueles que se põem a fazer vaticínios fatalistas e pré-determinados sobre o seu suposto “destino” - ou além de tudo o resto, ainda teria ficado com problemas que não existiam necessariamente, e com minhocas na cabeça para o resto da encarnação. Serviriam como isco para o peixe, mas não para muito mais do que isso. As minhocas, digo, porque vaticínios daquele tipo são de ursos que não pescam nada.

Mas porque foi capaz de o fazer – de se assumir em autenticidade, digo –: de admitir que tinha frio;  e por não ter desistido de procurar quem o ouvisse, o contivesse e o ajudasse – ou, pelo menos, que o aceitasse -, o ursinho transcendeu o karma de ser um ursinho cheio de quadraturas da Lua, do Sol a Saturno e Urano na IV.

E assim, o ursinho inaugurou talvez uma nova era glaciar, em que pela primeira vez um urso polar admitiu que tinha frio, e talvez tenha com isso dado origem a uma nova sociedade de ursos no futuro.






Quiçá nesse momento o pai tivesse optado pelo amor ao seu filho, em detrimento da sujeição cega à tradição e à normalidade e tivesse escolhido ajudá-lo a ser quem ele era: um ursinho polar cheio de frio.

Quem sabe o pai tivesse dado início a uma campanha de sensibilização para os ursos polares que vivem com frio e outros ursinhos inadequados se tivessem permitido sair do segredo e do desconforto das prisões glaciares dos seus próprios papéis sociais e se tivesse criado um movimento dos ursos com frio; quem sabe naquele glaciar tivesse sido criado um programa especial para enviar para os trópicos os ursinhos que tivessem frio, ou passasse a ser socialmente aceite que os ursos que queiram pudessem usar casaco, gorro e samarra.

Quem sabe o pai tivesse pegado nas suas economias e enviado o ursinho para a savana africana, ou o tivesse inscrito num programa e intercâmbio com girafas calorentas. Ou criado, com ajuda de corvos de outros países, um crow-de-funding.

Quem sabe o que aconteceu a partir desse momento.

Mas podemos imaginar, sonhar, e supôr.

A nós, e por nós, só nos resta esperar que cada um de nós possa admitir, perante si próprio e perante os seus pares, o frio que cada um de nós sente – na certeza que não existe outro caminho para a integração emocional, para o poder pessoal, para a libertação da tirania dos papéis sociais, e para a evolução da sociedade de que fazemos parte. Não imaginamos o que fazemos pelo conjunto quando fazemos a nossa parte como partes.

E um dia, assim corajosos e inteiros, todos estaremos em harmonia connosco próprios e contribuindo à medida do nosso frio – e da nossa coragem para admitirmos quem somos - para um futuro em que a verdade de quem somos, e não a tradição e as regras, ditem os limites da integridade, da liberdade pessoal, e do saudável auto-respeito pelo que somos, sentimos, e precisamos para sermos felizes.


NUno Michaels
in, Tao en choice

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