terça-feira, 21 de julho de 2015

Ātma é a bigorna que molda as coisas




Para entrarmos no tema, nada melhor que recorrermos à Pañchadaśī, um belíssimo texto sobre Vedānta atribuído ao sábio Vidyāraṇya, que foi ministro do império Vijayanāgara, no século. Ele abandonou esse posto administrativo e se tornou um sannyāsin, um renunciante.
Seu nome significa “A Floresta do Conhecimento”.

A estrofe 13 menciona o termo kuṭaḥ, que significa literalmente bigorna, mas que pode ser traduzido como invariável, e define, neste contexto, aquilo que não muda: “À luz da sempre efulgente, invariável Testemunha, que é da natureza da Consciência, a inteligência, iluminada, dança de maneiras variadas”.

Esclarecendo o significado desse termo, diz Swāmi Dayānanda:
“Kuṭaḥ significa imutável, e designa aquilo que não muda. Indica, em sânscrito, a bigorna que o ferreiro usa para dar forma aos instrumentos que fabrica. A bigorna permite que o artesão bata no metal incandescente, para que este assuma as variadas formas das ferramentas e objectos que ele produz, sem sofrer nenhuma modificação nela mesma. Assim, a bigorna é símbolo de Ātma, que dá lugar a todos os nomes e formas sem mudança aparente nele mesmo”.

Discernindo sākṣi da mente.
A última estrofe deste trecho diz que “a distinção entre o externo e o interno acontece com referência ao corpo[mente], e não à Testemunha. Os objectos são externos ao corpo, o ego é interno”.
Isto não significa que sākṣī esteja “no interior” de algo maior que ele, mas que, sendo ilimitado, não está condicionado por tempo ou espaço e, portanto, não tem nem interior nem exterior.
Não há divisão para sākṣī.
A Testemunha está tanto dentro quanto fora, pois é consciência ilimitada. Não tem localização, portanto, não precisa nem pode ser encontrada “dentro”.
A eventual confusão entre sākṣī e a mente precisa ser esclarecida.

A água assume a forma do recipiente que ela ocupa. Similarmente, a mente adquire a forma dos objectos que vê através dos sentidos. Portanto, a natureza de buddhi é a inconstância, o movimento constante, uma vez que os sentidos nos transmitem incessantemente sensações e percepções. É preciso que a mente esteja de facto voltada para o exterior, para poder ver o que está aí para ser visto, por exemplo, quando você está a conduzir o seu veículo na cidade.

Se a mente não acompanhar os sentidos em direção ao exterior, não poderíamos por exemplo usar um carro ou uma bicicleta sem nos colocar em perigo ou sem colocar em perigo a vida dos demais. Não há nada de errado, então, com o facto da mente viver voltada para fora.
Pelo contrário: uma mente que não seja capaz de se voltar para o exterior será uma mente disfuncional, incapaz de realizar adequadamente suas funções.

O problema é atribuir a sākṣī essa inconstância e essa exterioridade características da mente. Este tema é esclarecido em detalhes nos próximos versos. Āropya, a superimposição, é fazer uma projeção de alguma coisa sobre outra, de maneira que não mais consigamos ver o real por trás do projectado.

O grande problema é não compreender que somos a Consciência invariável, e não a inconstância da mente. Compreender esta parte do processo do autoconhecimento é essencial para podermos levar a meditação da sala de práticas para o quotidiano, para podermos tornar Karma Yoga todas e cada uma das nossas acções.


Sākṣī está nas experiências místicas, mas também nas profanas.

A Consciência que é sākṣī não está “além” da palavra ou do pensamento, como alguns autores declaram, nem que ela possa ser o objecto de alguma experiência mística ou religiosa.
A Consciência não cabe numa ideia, porque as ideias são intrinsecamente limitadas pelo tempo-espaço. A Consciência é autoefulgente e ela ilumina a inteligência, ilumina a mente.

Esses autores dizem que Ātma só poderia ser “experienciado” em estados de meditação profunda, mas não é bem assim: Ātma está em todas as experiências, Ātma é todas as experiências. Para conhecer o sabor doce, precisamos provar algum alimento doce. Para conhecer o sabor salgado, precisamos provar algo que seja salgado.

Pela mesma conta, poderíamos então, provar o “sabor” de Ātma?
Poderíamos “experienciar Ātma”?
Ātma pode ser um objecto da sua apreciação?
Se alguém dizer que experienciar Ātma é como desgustar uma fruta exótica e deliciosa, estará necessariamente reduzindo o ilimitado a uma única experiência, que tem início, meio e fim. Ora, acontece a Ātma não tem nem início, nem meio, nem fim.

Portanto, não temos nem a necessidade, nem a possibilidade, de tornar Ātma um objecto da nossa percepção. Não iremos conseguir fazer isso, nem devemos, nem precisamos. Essa é a razão pela qual Ātma é chamado sākṣī, Testemunha: para indicar que essa Testemunha não pode se tornar um objecto que seja observado por um sujeito.

Ātma é o sujeito que aprecia todos os objectos, e esse sujeito é você, sou eu, é cada um de nós, é todos os seres vivos e objectos inanimados, é a totalidade da criação e a inteligência graças a qual ela existe. Cultivando esse discernimento na prática de meditação, seremos capazes de levar a mesma visão clara para todos os momentos do nosso quotidiano.


Pedro Kupfer

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