sábado, 4 de julho de 2015

....................o cansaço dos outros




Um amigo dizia-me que estava cansado das exigências de uma relação.
Nem sempre percebo, quando os outros me falam dos seus vários cansaços, ou até de outras coisas que sentem, por isso também não sei se percebi qual era, afinal, o cansaço a que ele se referia.
Porque é dele, não é meu.

Temos esta mania de que somos capazes de vestir a pele dos outros e de sentir o que eles sentem. 
Não somos. 
Mesmo assim, procurei na minha pele o cansaço. Procurei todas as relações que me desgastam ou que sinto que exigem de mim o que acredito que não tenho para dar. Não houve uma só que escapasse!
A relação com a minha mãe, por exemplo. cansa-me ouvi-la a desfiar as doenças e a contar-me das idas ao médico e a pedir-me que dê atenção ao seu sofrimento.
Cansa-me, a relação com o meu pai, quando me faz mil perguntas sobre o que ando ou não ando a fazer, quando parece exigir que eu faça mais e melhor e me diz que tem pena de me sentir tão aquém das minhas capacidades.
Cansa-me, a relação com a minha filha mais velha, ultimamente numa montanha de altos e baixos, ora a rir-se que nem uma histérica, com a música aos gritos, ora a chorar-me nos braços e a perguntar-me "porquê" porquê? porquê?"
Cansa-me, a relação com o meu filho, às vezes tão malcriado que só me apetece dar-lhe tabefes na cara, abaná-lo e perguntar-lhe se acha que a vida é só futebol, obrigá-lo a estudar, pedir-lhe satisfações quando tem negativas nos testes.
Cansa-me, a relação com as duas mais novas. quando uma quer saber, naquele exacto momento, se pode convidar vinte amigos para os anos - que só irá fazer dali a seis meses - e a outra me esgota a paciência, quando demora vinte minutos a engolir um prato de sopa.
Cansa-me, sim, o quotidiano de que também são feitas as relações.
Cansa-me ter de gerir as rotinas, as expectativas, as ilusões e as desilusões, os contratempos, os desacertos, os ritmos...
Cansam-me, acima de tudo, os mil pensamentos que caem, a cada segundo, sem que eu sequer me aperceba.
No fundo, o que mais me cansa é pensar.

Se for honesta, não é a relação com a minha mãe que me cansa, mas a ideia de que é cansativo ter uma mãe sempre a queixar-se e a expectativa de que seria tão bom se parasse. Que descanso seria, se o meu pai nunca mais me perguntasse mais nada, porque só de pensar que vai perguntar, já fico cansada. Se a filha mais velha não andasse aos altos e baixos, e os meus pensamentos aos altos e baixos, aos altos e baixos, aos altos e baixos, cansava-me menos. Se não pensasse que o meu filho devia pensar noutras coisas, não me cansava a pensar nas coisas em que acho que ele devia pensar.

Confuso? Talvez.
Mas reparo que o cansaço, o cansaço maior, vem do que exijo de mim. Que a relação que mais me desgasta, e afinal a única que posso mudar, é a que tenho comigo. Cansa-me, aquele eu que se queixa e que me pede que dê atenção ao seu sofrimento. Cansa-me o eu que me diz que estou aquém das minhas capacidades e que devia fazer muito mais do que faço, cansa-me o eu que vem dar aos meus braços num pranto e que me pergunta "porquê? porquê? porquê?". Cansa-me acreditar que devia pensar noutras coisas e, afinal, pensar sempre nas mesmas. Cansa-me antecipar, talvez não festas de anos, mas futuros para todos os planos, pormenores para cada um dos meus sonhos, cansa-me sobretudo pensar que provavelmente não sairão como quero, não serão como sonho. Cansa-me demorar tanto tempo a engolir tantas coisas e mastigar outras tantas...

Canso-me, canso-me imenso, canso-me tanto, quando a relação que tenho comigo não me satisfaz, quando penso em tudo o que queria fazer, em vez de estar atenta ao que faço, ou quando penso que devia ter feito isto ou aquilo de outra maneira, quando penso em desfazer o que fiz e, em pensamento, desfaço e refaço e desfaço e refaço e desfaço e refaço... canso-me.
Quando penso mais logo, mais tarde, quando penso "e se?", "e depois?", quando vou buscar provas, acontecimentos, razões para me convencer de que tudo o que penso é verdade.

E então não sei se era deste cansaço que o meu amigo me falava ontem, se era desta exigência da mente, que nos faz estar sempre a pensar numa coisa qualquer, deste constante ir e vir que temos connosco, desta relação entre o corpo e a mente e o espírito, de todas as partes a que é preciso atender para sermos um todo.
Este cansaço de todos os dias nos vermos ao espelho, de nos relacionarmos com facetas de nós de que não gostamos, este cansaço de nos sentirmos humanos e frágeis e cheios de defeitos e a canseira que é, levarmos com isto todos os dias, sem nunca podermos fugir à relação que temos connosco e, acima de tudo, aos pensamentos que nunca paramos de ter: sobre nós próprios e sobre os outros.


Inês de Barros Baptista

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