terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Como se arma o Daesh




Facas, uma corda, pregos e martelo, gasolina e um isqueiro ou um cartucho de dinamite são tudo o que o Estado Islâmico necessita para matar de forma violenta e moralmente degradante, mas criando um impacto visual forte – é também tudo o que o grupo conhecido por ISIS, ISIL ou Daesh precisa para impor uma campanha mediática e uma marca de terror que o torna distinto de todos os combatentes que lutam pelos territórios e matérias-primas do Iraque e da Síria. Mas se essa é a matéria de que se alimenta a propaganda do grupo, conquistar e segurar território exige-lhe outro tipo de artefactos de guerra – e aqui entra a questão do armamento, do ligeiro ao mais pesado, do municiamento e das vias para o obter.

É sobre este último ponto - como chegou o Estado Islâmico a munir-se de um arsenal tão letal - que a Amnistia Internacional acaba de divulgar um relatório: 
Taking Stock: The arming of Islamic State.

Taking Stock expõe a capacidade bélica do Estado Islâmico, que soube tirar proveito da incapacidade da Administração norte-americana e dos sucessivos governos iraquianos para executar a transferência e armazenamento dos equipamentos bélicos proporcionados pela comunidade internacional ao exército do Iraque.

Na realidade, o ISIS alimenta-se de material bélico produzido em 25 países.
Uma variedade de equipamentos de combate que possibilitou ao grupo apoderar-se de importantes cidades iraquianas como Fallujah, Ramadi ou Mossul e estabelecer uma capital em Raqqa (Síria). Cidades onde o grupo impunha uma lei de ferro (a sharia) por um lado - com execuções arbitrárias e uma violação generalizada dos Direitos Humanos - e criava, por outro, uma espécie de círculo vicioso, apoderando-se aí de novo armamento que possibilitava aos seus homens a preparação de novas batalhas.

A origem do problema recua aos anos da guerra Irão-Iraque e da ocupação americana durante a operação Shock and Awe (Choque e Horror) levada em 2003 até ao coração de Bagdade, mas a AI assinala como esta é uma história que se repete, um problema que volta a verificar-se na forma como os islamitas radicais se aproveitam do modo aparentemente desajeitado como os países do Ocidente procuram munir os grupos rebeldes que combatem o Presidente sírio, Bashar al-Assad. 

A juntar à disfuncionalidade da salvaguarda de equipamento militar na região está a corrupção de desertores que de alguma forma mantêm acesso ao equipamento militar. Este será também apontado no relatório como um ponto relevante na forma como é possibilitada a transferência de armas e munições para o Estado Islâmico; e, não menos importante, a captura de arsenais na forma de despojos de guerra, quer ao desorganizado exército iraquiano, quer aos militares que se mantêm fiéis a Assad ou aos grupos que o combatem. Taking Stock assinala que a captura de bases iraquianas a partir de 2014 marcaria um ponto de viragem para o ISIS.

“Em Novembro de 2014, um relatório da equipa de monitorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas que estava a averiguar a al Qaeda e seus associados concluiu que a zona de conflito da Síria e do Iraque estava ‘inundada com armas’ capturadas principalmente ao exército e que o Estado Islâmico estava na posse de armamento que lhe permitia abastecer os seus combatentes por dois anos”, refere a Amnistia Internacional, para acrescentar que estava a falar de “veículos, armas e munições suficientes para três divisões iraquianas convencionais, no total 40 a 50 mil militares. A captura de material ocorreu nas províncias de Anbar e Salah al-Din, mas também nas cidades de Mossul, Kirkuk e Diyala – após os confrontos, aponta o grupo de estudo da ONU, 30 por cento dos soldados iraquianos abandonaram o local, deixando para trás o equipamento militar. As armas voltariam a mudar de mãos duas semanas depois, quando a 500 quilómetros de Mossul as forças curdas do PKK tomaram posse de parte desse equipamento de origem norte-americana.

Difícil de provar, aponta a AI, é a transferência directa realizada por alguns países para o Estado Islâmico, apesar dos relatos veiculados por vários meios de comunicação. O que a Amnistia tem por certo é que esses outros países - Estados Unidos, Turquia e alguns do Estados do Golfo, por exemplo - acabaram por ver cair nas mãos do ISIS armas e outros equipamentos militares que destinaram aos grupos rebeldes que combatem na Síria.


Iraque ou a fonte de todos os males

Sinalizando o Iraque como o epicentro do mercado internacional de armas para a região do Golfo, a Amnistia tem o país como uma ferida que há quatro décadas é aprofundada com conhecimento da comunidade internacional. Propugna por isso que no tocante à exportação de armas para o Iraque os países negociadores de armas adoptem a regra da “presunção de negação”. Ou seja, “na dúvida, não vender”.

Refere Patrick Wilcken, perito que trabalha para a organização:
“Os riscos na exportação de armas para regiões instáveis exigem uma análise de longo prazo (…) Isto deve incluir uma avaliação sobre as capacidades dos militares e forças de segurança para controlar eficazmente os stocks e se eles ainda respeitam os Direitos Humanos e as normas humanitárias internacionais” – este seria, para a AI, um primeiro passo para cortar a “energia” de que necessita o Estado Islâmico na sua campanha de terror.

“O vasto e variado armamento usado pelo grupo armado que se autodenomina Estado Islâmico é um caso clássico que ilustra como o comércio de armas realizado de forma imprudente pode alimentar as atrocidades em grande escala”, conclui Patrick Wilcken, que está envolvido na investigação do controlo de armas, comércio seguro e Direitos Humanos.

“A fraca regulamentação e uma ausência de supervisão do imenso fluxo de armas que vem de há décadas proporcionaram ao Estado Islâmico a oportunidade de um acesso a poder de fogo que não tem precedentes”, lamentou. Um dos momentos-chave que criaram essa janela de oportunidade foi precisamente a conquista a norte da cidade de Mosul, em junho de 2014. O Estado Islâmico não só tomou o poder na cidade como ganhou acesso a um vasto armamento estrangeiro que se encontrava armazenado naquela que é a segunda maior cidade do Iraque. 

Estamos a falar de armas americanas, mas não só. Puderam também deitar mão a veículos militares que lhes proporcionariam condições de que ainda não dispunham para lançar a sua ofensiva a outras zonas do país. Não é por acaso que foi por essa altura que se tornaram um objecto constante das primeiras páginas nos media.


Fornecido pelos melhores

O relatório da Amnistia evidencia a capacidade do Estado Islâmico para manter esse arsenal vasto, moderno e letal, usado para impor uma presença na Síria e Iraque com uma imagem de marca fundada no terror: “Execuções sumárias, violações, tortura e sequestros (…) que forçariam milhares de pessoas a fugas precipitadas e a tornar-se refugiados dentro do seu próprio país”.

A contribuição para a constituição do poder bélico do Estado Islâmico é participada - para já, digamos que de forma aparentemente involuntária - por pelo menos 25 países. À cabeça: Estados Unidos, Rússia e as repúblicas da antiga URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). A questão da capacidade do ISIS em termos de munições não tem um tratamento especial no relatório.

No relatório não é sugerido que, ao contrário do que seria expectável a médio prazo, a grande variedade de armas - exigindo consequente variedade de munições - se coloque como uma fragilidade dos extremistas. Certo é que o ISIS se fornece de munições, através da captura a forças sírias e iraquianas, fabricadas num grande número de países, pelo menos 21, em particular China, Rússia, EUA, Sérvia e Sudão, este último apenas residualmente.

Foram coligidas imagens de grupos da oposição síria com armas de infantaria da antiga Jugoslávia: espingardas de repetição, lança-granadas, metralhadoras, morteiros e rockets anti-tanque. Este material, que terá chegado ao Exército Livre da Síria transportado por um C-130 da Força Aérea saudita no início de 2013, acabaria por ser capturado pelo Estado Islâmico após confrontos com grupos curdos.

O que mais surpreende na leitura de Taking Stock é a possibilidade, que se abre com o texto divulgado esta terça-feira pela Amnistia Internacional, de arriscarmos um exercício de decalque entre as listagens do equipamento do exército iraquiano e as listagens daquele que se encontra nas mãos do Estado Islâmico. 


Livre-trânsito para as armas

Essas são peças de guerra que chegam ao Estado Islâmico por várias vias: a captura durante os combates; a oferta de simpatizantes que estiveram de alguma forma ligados a Bagdade; a venda corrupta de armas no seio do próprio exército iraquiano; ou o simples roubo e saque de instalações. De facto, vias muito eficazes que os militantes do ISIS mantêm oleadas em proveito próprio para juntar uma capacidade bélica que iguala as forças armadas convencionais dos países mais bem equipados, como se poderá observar pela lista abaixo.

A meio do relatório, a Amnistia faz uma listagem de casos concretos e avança com o exemplo de uma negociação entre o Estado Islâmico e o Exército Livre da Síria, um dos grupos que se encontra a combater o Presidente Assad no terreno.


Desvios e pilhagens

Se a recolha dos despojos de batalha e a intervenção de elementos corruptos do exército iraquiano surgem como facilitadores para a obtenção de armas e munições que não estão na possibilidade de controlo por parte da comunidade internacional, já o comércio de armas instituído e armamento de grupos apoiados pela comunidade internacional são uma situação para a qual a Amnistia Internacional reclama mais atenção.

Por exemplo, a Amnistia sublinha que as partes envolvidas no conflito - directa ou indirectamente – deveriam pôr em prática formas de evitar o desvio das ajudas internacionais que inicialmente se destinavam aos rebeldes que estão a lutar contra o Presidente Assad na Síria.

Assinala a Amnistia que a dimensão do armamento do Estado Islâmico “é o reflexo de décadas de transferência irresponsável de armas para o Iraque. Situação agravada por várias falhas na gestão da importação de armas e na implementação de mecanismos para evitar que as armas chegassem às mãos erradas durante a ocupação conduzida pelos Estados Unidos no pós-2003.

Da mesma forma, sublinha os efeitos devastadores que tiveram “o controlo frouxo sobre os arsenais militares e a corrupção endémica que minou os sucessivos governos iraquianos”.

Neste ponto, assinala-se como as décadas de 1970 e 1980, particularmente no decorrer do conflito entre Irão e Iraque, nos coloca perante um momento seminal no desenvolvimento da indústria bélica e do mercado global de armamento. Trata-se de um período em que Bagdade beneficia dos envios de armas que chegam de 34 países. À cabeça dos fornecedores estão Rússia, França e China, mas também entraram no negócio Brasil, Polónia, República Democrática da Alemanha, Bulgária, Checoslováquia e Itália.

Numa manifestação da amoralidade com que se desenrola o negócio, 28 desses mesmos países estavam simultaneamente a abastecer os arsenais de Teerão. Contas feitas, os dois países em conflito constituem-se no período 1980-1988 como um sexto das transferências mundiais de armamento; entretanto, o Iraque superou o Irão como maior importador com uns expressivos 12 por cento do mercado global de armas (Bagdade terá gasto 117 mil milhões de dólares no negócio de guerra só na década de 1980 – tudo pago pelo petróleo).

Só 23 anos depois, já no advento da ocupação americana do Iraque, seria retomada a circulação livre de armas na região.


Um maná de armas à mão de semear

A Amnistia assinala que, entre 2011 e 2013, “os Estados Unidos assinaram contratos de milhares de milhões de dólares para 140 tanques M1A1 Abrams, caças F16, 681 unidades de mísseis Stinger, baterias de artilharia antiaérea Hawk e outros equipamentos. Em 2014, os Estados Unidos tinham feito chegar ao Governo iraquiano mais de 500 milhões de dólares em armas ligeiras e munições”, fruto do relaxamento concedido pelo Congresso, Departamento de Defesa e Fundo de Reconstrução do Iraque relativamente às regras que antes constrangiam a ajuda de armamento.

E, depois de uma participação desastrada na invasão do Iraque em 2003, a Grã-Bretanha também voltou a entrar no jogo e - seguindo o modus operandi americano de subcontratação - adquiriu armas a diversos países (China, Bósnia-Herzegovina e Sérvia) para directo reenvio com destino a Bagdade. 

Estamos a falar de armamento que fugia aos inventários e perdia números de série no terreno: a Amnistia aponta exemplos de 2006, quando, no advento da formação das novas forças armadas iraquianas, apenas 2,7 por cento das peças de infantaria constavam de registos no Departamento de Defesa dos Estados Unidos. A norma do próprio Comando Central Americano consistia numa única urgência: “Estamos em guerra e temos de pôr as armas na rua”.

A par disto, sublinha-se o pesadelo herdado ainda de Saddam Hussein. Perante a iminência da entrada de tropas estrangeiras no Iraque, a estratégia do Presidente consistiu em espalhar o seu poderio militar pelo país, armazenando armas, equipamentos e munições em escolas, mesquitas, hospitais, armazéns criados quase de forma indiscriminada e que favoreceriam estratégias de uma guerra não-clássica.

O caos que daí adviria sente-se nas palavras do general John Abizaid, chefe máximo do comando central norte-americano, quando em 2003 testemunhou perante o Congresso: “Existe mais armamento no Iraque do que já vi em qualquer outro lugar na minha vida [650 mil toneladas de material espalhadas por vários locais] e não está seguro. Gostaria de vos dizer que temos tudo sob controlo. Mas não temos. Não há forças suficientes para guardar o armamento que existe no Iraque”. 

O caos em que se traduziu a invasão americana do Iraque resultaria ainda na tentativa de dispersar o exército fiel ao então presidente Saddam Hussein, qualquer coisa como 400 mil homens, o que se traduziu em dezenas de milhares de antigos membros do exército a regressarem a casa carregados de armas não registadas e surripiadas dos paióis.


Um arsenal com a prata da casa

E foi, uma década depois, a partir destes recursos e do caos organizativo que sempre fora prática corrente na região, que o Estado Islâmico constituiu o seu poderio militar. Como refere o relatório da AI: fundamentalmente através da aquisição “corrupta” e do fraco controlo no armazenamento dos arsenais. No fundo, o Estado Islâmico, que integra nas suas fileiras antigos generais de Saddam e chefes da al Qaeda, limita-se a aproveitar debilidades - poderíamos dizer atributos - que há décadas são uma marca da região.

Como uma montanha russa imparável e face ao avanço dos homens do Estado Islâmico, a comunidade internacional liderada pelos Estados Unidos decide, a partir de Agosto de 2014, intervir de forma mais activa no terreno. Washington procurou então coordenar um fundo para novo reequipamento das forças que combatem os islamitas radicais. As forças curdas são as primeiras a beneficiar desta ajuda.

Aqui, a Amnistia Internacional deixa um apelo às nações do mundo para fecharem a torneira à exportação de maquinaria de guerra destinada à Síria, com um embargo total ao país, mas não só: também o corte de fornecimentos aos grupos armados da oposição a Assad que estejam envolvidos na prática de crimes de guerra, crimes contra a Humanidade e outra espécie de abusos contra os Direitos Humanos.

Face ao incumprimento generalizado na região de pressupostos de segurança face à proliferação de armamento, uma das garantias exigidas pela Amnistia aponta à ratificação do Tratado de Comércio de Armas Convencionais.


Tratado para as Armas Convencionais

É, portanto, natural que a Amnistia Internacional dedique um dos capítulos deste relatório à recomendação de responsabilidades aos países que intervêm na região e às suas obrigações face à legislação internacional, tendo particularmente em vista que a proliferação incontrolada de armas e sua posse por grupos marginais acaba por ter a pior das consequências: o abuso dos Direitos Humanos, a tortura, a morte indiscriminada e o desrespeito pelas etnias territoriais e religiosas que fazem o caldeirão populacional do território, fazendo milhões de refugiados e deslocados internos. A AI atribui ao Tratado de Comércio de Armas Convencionais (TCAC) um papel central no controlo da proliferação de armas para a Síria e Iraque e na resolução deste problema. Adoptado pela Assembleia Geral da ONU em Abril de 2013, o TCAC entrou em vigor há um ano, em 24 de Dezembro de 2014, depois de recolher as 50 ratificações necessárias.
É o primeiro tratado internacional a regular o comércio de armamento. 

Fundamentalmente, trata-se de um documento que obriga os signatários e partes envolvidas a evitar transferências de armas que podem ser usadas para cometer violações dos Direitos Humanos e, também nesse sentido, e tendo em conta o cenário descrito pela Amnistia, impedir o desvio de armas para grupos de propósitos duvidosos, se não - como no presente caso - sinistros.

Da mesma forma, o TCAC obriga a estes princípios as empresas envolvidas na fabricação, financiamento, intermediação e transporte de bens militares, compelindo-as a salvaguardar as suas próprias garantias, para assegurar que não se tornam cúmplices na perpetração de crimes contra a Humanidade e de violações dos Direitos Humanos.


Paulo Alexandre Amaral



Este é um bom artigo para tentarem disfarçar a total preponderância dos EUA e sua indústria do armamento no "conflito" (eufemismo para dizer tentativa ilegal do ocidente para derrubar um governo não obediente às suas ordens).

Para além de se terem "esquecido" de referir as toneladas de armas largadas pelos EUA "por engano" pelo ar precisamente sobre combatentes do estado islâmico, estão os mísseis TOW aos milhares a serem fornecidos pela Arábia Saudita, após os ter comprado aos milhares aos EUA.

A Amnistia Internacional  continua a disfarçar a preponderância das armas americanas, quer em quantidade quer em qualidade, nos inventários do Estado Islâmico e o comportamento dos EUA que viola a lei internacional ao tentarem derrubar um governo reconhecido internacionalmente através da infiltração de mercenários treinados e armados pela CIA e Pentágono, depois de terem feito serviço idêntico na Líbia.

Com este relatório encomendado, consegue-se baralhar um pouco as coisas tentando-se dar a mesma importância à Rússia, China e EUA nas armas dos terroristas, coisa que é totalmente errada, aliás, quem ler o relatório como deve ser percebe logo isso, pois as suas "conclusões" não correspondem aos factos e armas discriminadas.



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