quinta-feira, 17 de março de 2016

Cartas a Hermengardo




Meu querido Hermengardo,

          Em verdade eu te digo: felizmente tu existes. A mim me bastaria apenas a existência de uma criatura sobre a terra para satisfazer meu desejo de gloria, que não é senão um profundo desejo de vizinhança. Porque eu me enganei quando há tempos imaginei como real a minha vontade de “salvar a humanidade”, “malgré”, ela. Agora só desejo mais alguém, alem de mim mesma, para que eu possa me provar... E nessa volta para Idalina compreendi também que tão belo e tão impossível como aquele outro sonho é o de tentar salvar-se a si mesmo. E se é tão impossível, por que então me encaminhar para esta nova cidadela que seria agora uma pobre mulher perturbada? Não sei. Talvez porque é necessário salvar alguma coisa. Talvez pela consciência tardia de que somos a única presença que não nos deixará até a morte. E é por isso que nós nos amamos e nos buscamos a nos mesmos. E porque, enquanto existirmos, existirá o mundo e existirá a humanidade. Eis como, afinal, nos ligamos a ele.
          E tudo isso que eu estou dizendo é apenas um preâmbulo qualquer que justifique meu gosto de te dar tantos conselhos. Porque dar conselhos é de novo falar de si. E cá estou eu... Mas, afinal, eu posso falar com consciência em paz.  Nada conheço que dê tanto direito a um homem como o fato dele estar vivendo.
          Este preâmbulo também serve por uma desculpa. É que percebo, mesmo através das palavras mais doces que o milagre de respirares me inspira, o meu destino é jogar pedras. Nunca te zangues comigo por isso. Uns nasceram para lançar pedras. E, afinal, (aqui começa minha função) por que será de mal lançar pedras, senão porque elas atingiram coisas tuas ou dos que sabem rir e adorar a comer?
          Uma vez esclarecido este ponto e uma vez que me permite jogar pedras, eu te falarei da Quinta Sinfonia de Beethoven.
          Senta-te. Estende tuas pernas, fecha os olhos e os ouvidos. Eu nada lhe direi durante cinco minutos para que possas pensar na Quinta Sinfonia de Beethoven. Vê, e isto será mais perfeito ainda, se consegues não pensar por palavras, mas criar um estado de sentimento. Vê se podes parar todo o turbilhão e deixar uma clareira para a Quinta Sinfonia. É tão bela.
          Só assim a terás, por meio do silêncio. Compreendes! Se eu a executar para ti, ela se desvanecerá, nota após nota. Mal dada à primeira, ela não mais existirá. E depois da segunda, o segundo não mais ecoará. E o começo será o prelúdio do fim, como em todas as coisas. Se eu a executar ouviras musica e apenas isto. Enquanto que há um meio de detê-la parada e eterna, cada nota como uma estatua dentro de ti mesmo.
          Não a executes, é o que deves fazer. Não escutes e a possuirás, não ames e terás dentro de ti o amor. Não fumes o teu cigarro e terás um cigarro aceso dentro de ti. Não ouças a Quinta Sinfonia de Beethoven e ela nunca terminará para ti.
          Eis como eu me redimo de lançar pedras, tão sempre... Eis que eu te ensinarei a não matar. Erige dentro de ti um monumento do Desejo Insatisfeito. E assim as coisas nunca morrerão, antes que tu mesmo morras. Porque eu te digo, ainda mais triste que lançar pedras é arrastar cadáveres.
          E se não puderes seguir meu conselho, porque mais ávida que tudo é sempre a vida, se não puderes seguir meus conselhos e todos os programas que inventamos para nos melhorar, chupa umas pastilhas de hortelã. São tão frescas.


Clarice Lispector


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