segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Sete Cartas a Um Jovem Filósofo




A dor só é realmente fecunda quando a amamos, quando a vemos como indispensável à escultura que se está fazendo na nossa alma.(...)
Sofrer é um direito de primogenitura e não o podemos trocar por nenhum prato de lentilhas.(...)
E há-de haver ainda a gratidão pelos destinos que a concederam a nós e o amor pelos golpes que nos desfere; o que inclui, naturalmente, a compreensão, e o amor também, daqueles de que o destino se serve para despedir as grandes marteladas que vão forjando o metal.(...)
Os mais fracos correm diante das suas emoções uma porta ondulada de ironia.
Os mais fortes, porém, e eu desejo que você seja dos mais fortes, encerram-se num palácio de silêncio.


 Quem tem uma obra, a obra o tem; quem traz mensagem a há-de ler perante o rei; arqueja, mas lê, sufoca, mas lê, e depois de a ler cairá por terra, mas já a leu. É a posse mais terrível de todas, a escravatura mais completa, aquela que uma obra exerce sobre o seu criador (…) Se você for um criador não dará a felicidade nem a si nem aos que estão imediatamente à sua volta.

A impressão de que verdadeiramente a vida é nobre e bela, forte, calma e clara, e de tão extraordinário encanto, de tão ardente energia que se plenamente tivéssemos consciência do que é a vida não a poderíamos suportar. Explodíamos.

Ser tomado pela arte é, de certo modo, ser excluído da vida, colhido, metido numa moldura e transformado num adorno de sala; o que é realmente vivo parte todas as molduras e regressa à liberdade da selva.

Quem fala de Amor não ama verdadeiramente: talvez deseje, talvez possua, talvez esteja realizando uma óptima obra literária, mas realmente não ama; só a conquista do vulgar é pelo vulgar apregoado aos quatro ventos; quando se ama, em silêncio se ama: às vezes o sabe a mulher amada, mas creio até que num amor que fosse pleno, em que nada entrasse das preocupações da terra, nem ela o saberia.

Cada vez vou sentindo mais que se não pode perceber o que seria essencial perceber, mas procedo sempre como se estivesse convencido do contrário, ou, por outras palavras, não renuncio.

A filosofia que se não apoia num perfeito encadear de raciocínios e numa informação que tem de ser a mais sólida e a mais ampla, é apenas literatura, e da pior literatura. Porque é a literatura dos que não tiveram a força criadora suficiente para escreverem teatro ou poesia lírica ou romance. Uma literatura lavrada, que disfarça com uma nuvem de retórica os espectros de ambições que não puderam realizar-se.

Meu caro amigo: Do que você precisa, acima de tudo, é de se não lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por você; fique certo de que mais valem todos os erros que forem cometidos segundo o que pensou e decidiu do que todos os acertos, se eles foram meus, não seus. Se o criador o tivesse querido juntar muito a mim não teríamos talvez dois corpos distintos ou duas cabeças também distintas.Os meus conselhos devem servir para que você se lhes oponha. É possível que depois da oposição venha a pensar o mesmo que eu; mas nessa altura já o pensamento lhe pertence.São meus discípulos, se alguns tenho, os que estão contra mim; porque esses guardaram no fundo da alma a força que verdadeiramente me anima e que mais desejaria transmitir-lhes: a de se não conformarem.


O público adora os filósofos que pode compreender, que lhe vão na esteira, desencontrados como ele; o som das palavras move mais os homens do que o seu conteúdo.

Admirar a Natureza e não admirar a mulher que é a sua obra mais bela e não a admirar, querendo-a, em tudo o que ela é, espírito e corpo, é ser um poeta que faltou, na sua alma, à amplitude do mundo. O primeiro dever diante de uma mulher é ser um fogo que arde e um coração que se vigia.

Você vai precisar de todo o seu tempo, de toda a sua energia, de pensar de manhã até à noite nos problemas filosóficos; você tem de adquirir erudição filosófica e o treino de pensar; a vida, para a vida, é sempre longa; mas para a arte é sempre breve; só quando se não faz nada há sempre tempo.


Aqui tem você um conselho que lhe poderá servir para a sua filosofia: não force nunca; seja paciente pescador neste rio do existir. Não force a arte, não force a vida, nem o amor, nem a morte. Deixe que tudo suceda como um fruto maduro que se abre e lança no solo as sementes fecundas. Que não haja em si, no anseio de viver, nenhum gesto que lhe perturbe a vida.

Se você não pode amar, não ame; seja simples, seja humilde, faça calmo o seu trabalho, e deixe o resto. O amor é uma criação de beleza, como a pintura e a música; reserva-se a raros ser Ticiano ou Greco ou Mozart ou Bach; reserva-se a raros o privilégio de amar.

Entre as palavras e as ideias detesto esta: tolerância. É uma palavra das sociedades morais em face da imoralidade que utilizam. É uma ideia de desdém; parecendo celeste, é diabólica; é um revestimento de desprezo, com a agravante de muita gente que o enverga ficar com a convicção de que anda vestida de raios de sol.

 Apesar de todas as amizades, sempre na vida estamos sozinhos; o que é mais grave, mais doloroso, exactamente como o que é mais belo, passa-se apenas connosco. Entre um homem e outro homem há barreiras que nunca se transpõem. Só sabemos, seguramente, de uma amizade ou de um amor: o que temos pelos outros. De que os outros nos amem nunca poderemos estar certos.


 Agostinho da Silva
in, Sete Cartas a Um Jovem Filósofo



Sem comentários:

Enviar um comentário