segunda-feira, 10 de abril de 2017

A Verdade é um Modo de Estarmos a Bem Connosco




Cada época, como cada idade da vida, tem o seu secreto e indizível e injustificável sentido de equilíbrio. Por ele sabemos o que está certo e errado, sensato e ridículo.
E isto não é só visível no que é produto da emotividade.
É visível mesmo na manifestação mais neutral como uma notícia ou um anúncio de jornal.
Donde nasce esse equilíbrio?
Que é que o constitui? O destrói?
Porque é que se não rebentava a rir com os anúncios de há cento e tal anos? (Rebentámos nós, aqui há uns meses, em casa dos Paixões, ao ler um jornal de 186...).
Mas a razão deve ser a mesma por que se não rebentou a rir com a moda que há anos usámos, os livros ridículos que nos entusiasmaram, as anedotas com que rimos e de que devíamos apenas rir.
O homem é, no corpo como no espírito, um equilíbrio de tensões. Só que as do espírito, mais do que as do corpo, se reorganizam com mais frequência.
Equilibrado o espírito, mete-se-lhe uma ideia nova.
Se não é expulsa, há nela a verdade.
Porque a verdade é isso: a inclusão de seja o que for no nosso mecanismo sem que lhe rebente as estruturas. Ou: a coerência de seja o que for com o nosso equilíbrio espiritual.
A verdade é um modo de estarmos a bem connosco.
Mas é um mistério saber o que nos põe a bem ou a mal.
Os anúncios de há cem anos eram ridículos porque sim. Nos meus escritos de há anos, mesmo nos ensaios, aquilo de que me separo não são muitas vezes as ideias, a argumentação, mas um certo modo de se olhar para os argumentos, os problemas, um certo nível humano de encarar as coisas. Leio um ensaio de há vinte anos e sinto que eu tinha menos vinte anos.
Há um nível etário para a mesma verdade nos existir.
A verdade de que falei há vinte anos é-me exactamente a de hoje; e todavia há um desfasamento no modo como corri para ela e me entusiasmei com ela e me comovi com ela.
Tudo agora me acontece ainda mas num registo diferente.
Não é em si que as verdades envelhecem: é com as rugas que temos no rosto e na alma.


Vergílio Ferreira 
in, Conta-Corrente 2




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