quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Rosto Afogado





Para sempre um luar de naufrágio 
anunciará a aurora fria. 
Para sempre o teu rosto afogado, 
entre retratos e vendedores ambulantes, 
entre cigarros e gente sem destino, 
flutuará rodeado de escamas cintilantes. 

Se me pudesse matar, 
seria pela curva doce dos teus olhos, 
pela tua fronte de bosque adormecido, 
pela tua voz onde sempre amanhecia, 
pelos teus cabelos onde o rumor da sombra 
era um rumor de festa, 
pela tua boca onde os peixes se esqueciam 
de continuar a viagem nupcial. 
Mas a minha morte é este vaguear contigo
na parte mais débil do meu corpo, 
com uma espinha de silêncio 
atravessada na garganta. 

Não sei se te procuro ou se me esqueço 
de ti quando acaso me debruço 
nuns olhos subitamente acesos 
ao dobrar duma esquina, 
na boca dos anjos embriagados
de tanta solidão bebida pelos bares, 
nas mãos levemente adolescentes 
pousadas na indolência dos joelhos. 
Quem me dirá que não é verdade 
o teu rosto afogado, o teu rosto perdido, 
de sombra em sombra, nas ruas da cidade? 

Ninguém te conheceu, 
ninguém viu romper a luz na tua cama, 
ninguém sabe, ninguém, 
que o teu corpo, continente selvagem, 
se desvelava por uma pedra branca
atirada contra o nevoeiro. 

Por isso escrevo esta elegia 
como quem oferece a luz dos olhos; 
por isso canto o teu rosto afogado 
como quem canta um funeral de espigas. 


Eugénio de Andrade





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